terça-feira, 9 de outubro de 2012

Perimetral com 16

Era o véu da chuva, caindo em diagonal, a única coisa que o tentava proteger do disparo sem prévio aviso pelas costas. De quente só o cano fumegante que foi-se embora na garupa de uma Titan e as lâmpadas de mercúrio dos postes de concreto. No primeiro momento nem notou. Achou que o estampido fosse de um escapamento de moto. Só depois sentiu o cheiro de carne queimada vindo de tráz. Aí desabou. Ficou abraçado ao chão, aspirando lama, formando bolhas na poça rente à calçada de azulejos em preto-e-branco. Tombou, cambaio, na sarjeta enlameada da encruzilhada, com as pernas trançadas e o pé esquerdo descalço pela queda que lhe tirou a velha sandália de borracha verde-musgo (que já era da espessura de um biscoito, pelo desgaste do uso num asfalto quase sempre escaldante e que ele ainda usava, ou por não ter como comprar outra ou... vai saber o porquê). Na camisa branca tinha um surfista que agora tinha uma perfuração à bala na cabeça, altura da “pá” esquerda do alvo. Foi puxada até a metade do torso na intenção de enxugar a água e o sangue que já saía pelo nariz. A bicicleta que lhe servia de montaria ainda estava por entre suas pernas enquanto estirado no chão. Era uma “tropical” roxa. Tinha o pneu traseiro careca e roto, talvez pelo mesmo motivo da sandália. A roda dianteira estava empenada e faltavam raios. O selim estava envolto numa sacola de plástico de supermercado, artífice contra manchas úmidas no rabo. O seu ceifeiro, vestido de preto, capacete e viseira pretos, desceu, então, da moto preta e, num movimento banal, mórbido e cinicamente natural, o virou de barriga para cima e o fitou. Olhou como quem olha um pardal que se derruba dum galho de mangueira quando se é menino a passarinhar no mato com uma baladeira de liga de soro. O outro, que levava as rédeas do cavalo de ferro, não se dignou a virar a cabeça para assistir a cena que viria, cuja ele próprio havia sido co-produtor. O carrasco notou a respiração débil. O movimento arquejante do peito que inflava com dificuldade. A lama marrom ganhava um viscoso contorno vermelho escarlate. O sangue, em vazão sincronizada à tentativa de conseguir inspirar o ar, invadia a extensão líquida da poça a desenhar arabescos abstratos, irregulares e inconsistentes. “Deve ter perfurado o pulmão” pensou o assassino enquanto engatilhava o 38 “canela seca”. Meneou a cabeça qual uma serpente embaixo do capacete que escondia sua covardia. Nesse momento o baleado já não pensava tanto em manchas úmidas no rabo. Ele só conseguia pensar “Porra. Eu só ia comprar um maço de Derby Prata no Fogoió...” O matador apontou o revólver, respirou rápido e o imolou de vez com mais dois tiros no tórax, como se pensasse “Que o sofrimento acabe”. Ah, esse benfeitor. É quase um Jack Kervokian. Um Josef Mengele. Um humanista, sem dúvidas. Montou a garupa da Titan sem placa e rasgou asfalto afora. Passaram na Praça de Fátima para comprar dois X-Maranhão do Sul e rumaram ao Três Poderes. Eram umas nove e pouco da noite. Mas pouco foi o tempo que durou este cenário, coisa de 3 minutos. Rápido foi como chegaram os abutres e suas lentes, e suas íris, e suas línguas. O apresentador do programa policial logo se alocou ao lado do morto. Chegou antes mesmo da viatura da polícia. “Qual a primeira análise do acontecido, cabo Fulano?” “Ao que tudo indica tá pareceno acerto de contas.” Foram feitas perguntas aos populares a fim de entender e elucidar o caso, ou pelo menos para ter como veicular mais uma morte para de vender leite em pó e bolsas traficadas nos intervalos comerciais. O cinegrafista fazia contorcionismos com a câmera a fim de achar o melhor ângulo para mostrar simultâneamente os olhos semi-cerrados do defunto, sua boca arreganhada de onde fluia saliva e sangue a grudar na barba rala do rosto quadrado, com a língua roxa para fora como um cachorro chinês. Tudo que o cabo Fulano fez foi chamar o rabeção do IML. Devia ganhar uma medalha. Quarenta faces ao redor. Saíram das casas, dos bares, da igreja. Todos para sacramentar o feito. Dentre todas se destacava a de um menino, de aproximadamente 7 anos, descalço, pés na lama, sem camisa, calção de jogar bola do flamengo, cabeça pequena e oval, com curtos fios de cabelo grosso que mais pareciam fibra de côco. Fazia um mês que o pai tinha conseguido 50 reais para inteirar um ventilador. Fazia um mês que ele conseguia dormir tranquilo, sem que as muriçocas do tamanho de seringas chupassem tanto o sangue dele. E quando for perguntado sobre o pai, vai dizer “ Ele saiu pra comprar cigarro e...”. Um leve toque de controle abriu o portão eletrônico. A cerca eletrificada estalava intermitente acusando um mal-contato. Em frente à casa de meio quarteirão, um terreno baldio onde o “canela seca” foi jogado depois de limpas as impressões digitais. O carrasco desceu da garupa com pressa. O outro não o olhou, não se despediu e não desligou o motor. Apenas acelerou a moto com destino à uma boca de crack da Nova Imperatriz. Precisava de um tapa na brita todas as vezes que terminava um “serviço”. O assassino atravessou a espaçosa garagem revestida de cerâmicas brancas, onde havia uma caminhonete azul-cobalto estacionada. Gritou algo ininteligível para o pitbull, que vez ou outra é instrumento de trabalho para ele. Mas contrariando a política de camaradagem entre colegas de trabalho, o cachorro teima em latir para ele todas as vezes em que ele passa em frente ao canil. Subiu dois jogos de escadas com as sacolas dos sanduíches na mão esquerda. Bateu à porta da suíte. Abriu a porta. O ar frio do quarto o fez lembrar que havia chovido. “E aí?” Perguntou o homem deitado na king-size vestindo um pijama samba-canção de poliéster. “Missão cumprida, chefe.” Respondeu com certo orgulho na fala. “Certo. Me dá meu sanduíche. Pode ficar com o outro.” “Obrigado chefe. Valeu.” Saiu e fechou a porta. Foi comer na cozinha enquanto seu chefe devorava o sanduba gorduroso na sua king-size e, ao passo que esperava sua amante de 17 anos cheirar uma carreira no mármore da pia do banheiro, assistia o Cine Privê na televisão, alternando com o Altas Horas. O capanga sentiu uma ponta contentamento. Não por se safar do crime que acabara de cometer, ou por ter executado um “bom trabalho” de forma eficiente. Não, nada disso. Se contentou sobremaneira por ter ganhado, de graça, um sanduíche dado pela mão de um agiota que nunca havia dado nada a alguém nem perdoava nada. Mesmo um erro na finalização de um “trabalho”. Mesmo um atraso de uma mês no pagamento de uma dívida de 50 reais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário